Eu moro em São Paulo há um ano. Em São Paulo existe uma coisa chamada rodízio de veículos. A ideia por trás desse rodízio é a seguinte: o estado não oferece transporte público eficiente, então você é punido se quiser utilizar o seu carro como alternativa ao transporte público, em um determinado dia e horário da semana. Das 07:00 às 10:00 e das 17:00 às 20:00, justamente quando você mais precisa e quando o transporte público é mais ineficiente. O dia da semana é determinado de acordo com o final da placa do seu carro. No meu caso, final 3, o que me impede de utilizar livremente o meu carro nas terças-feiras.
Além de ineficiente, o transporte público em São Paulo é confuso e inseguro. Pesquisei as estatísticas de criminalidade nas capitais da Região Sudeste do Brasil. Embora não tenha encontrado estatísticas específicas sobre assaltos em meios de transporte públicos, encontrei estatísticas gerais de roubos, o que inclui assaltos à ônibus e outros meios de transporte público. A fonte é a Secretaria Nacional de Segurança Pública e a íntegra dos dados pode ser encontrada em http://www.mj.gov.br/senasp/pesquisas_aplicadas/mapa/rel/sit_roub.htm.
O gráfico abaixo compara a média de roubos para cada 100.000 habitantes, ocorridos de 2001 a 2003 nas quatro capitais da Região Sudeste. São Paulo é de longe a mais perigosa. Ocorrem 27% mais roubos em São Paulo do que no Rio de Janeiro e ocorrem 69% menos roubos em Belo Horizonte do que em São Paulo. Além disso, a média de engarrafamentos em São Paulo é notoriamente maior do que no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, o que faz com que sejamos obrigados a passar mais tempo no trânsito, aumentando a probabilidade de sermos assaltados.
Não é só no número de assaltos que São Paulo ganha do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Em São Paulo você tem quase vinte vezes mais chance de ser sequestrado do que no Rio de Janeiro. As mulheres em São Paulo correm duas vezes mais risco de serem estupradas do que nas outras capitais do sudeste. Mas como assalto à ônibus no Rio de Janeiro vira roteiro de longa-metragem, e assalto à ônibus em São Paulo não tem espaço nem mesmo na imprensa sensacionalista, as pessoas realmente acreditam que o Rio de Janeiro é uma cidade mais perigosa do que São Paulo.
Quando eu morava no Rio de Janeiro, usava o transporte público para ir e voltar do trabalho. Deixava o meu carro na garagem. Nunca fui assaltado. Em São Paulo, ninguém que tenha condições de comprar um automóvel irá optar voluntariamente pelo transporte público. O estado, em vez de melhorar a qualidade do serviço para atrair a população, prefere restringir o direito de ir e vir do cidadão e puní-lo caso ele decida não se sujeitar às regras impostas.
A alegação das autoridades quando criaram a lei do rodízio de veículos é de que essa restrição melhoraria as condições do trânsito na cidade. Não encontrei estatísticas confiáveis comprovando que alguma melhoria tenha, de fato, sido alcançada. E se as estatísticas comprovam alguma melhora, na prática isso não se traduz em melhor qualidade de vida para quem vive na cidade de São Paulo.
Há quem pense o contrário. Já escutei de mais de um paulistano que o trânsito ficou melhor depois da adoção do rodízio. É possível, mas ter ficado melhor do que era não significa que ficou bom. O paulistano que pensa assim é o mesmo que vota no Maluf e acredita que o Projeto Cingapura foi uma grande contribuição do ex-prefeito à cidade. A essas pessoas eu recomendo que compre um apartamento no Cingapura e passe a ir de ônibus todos os dias para o trabalho.
Não bastasse não investir o dinheiro dos impostos na melhoria dos transportes públicos, esse dinheiro é investido na aquisição de equipamentos que garantem a aplicação da punição aos infratores. Em vez de incentivá-lo a usar o transporte público melhorando a qualidade do mesmo, a prefeitura de São Paulo prefere incentivá-lo a usar o transporte público garantindo que você receberá uma multa caso se recuse. Antigamente, a prefeitura dependia de um fiscal anotando placas. Mas o atual prefeito de São Paulo, José Serra, adquiriu sem licitação equipamentos que são capazes de ler a placa dos automóveis, por meio de OCR, tecnologia utilizada há muitos anos por quem tem um scanner. O número de multas por infração à lei do rodízio aumentou.
A empresa da qual a prefeitura de São Paulo adquiriu os equipamentos chama-se Engebrás. De acordo com o Diário Oficial do Município de São Paulo a dispensa de licitação baseou-se em um artigo da lei das licitações (8.666/93), que permite isenção em caso de "emergência ou de calamidade pública". Calamidade pública é o sistema de transportes público em São Paulo.
Às terças-feiras, para fugir do rodízio sem ser obrigado a utilizar transporte público, acordo mais cedo. Levanto às 5:30 para garantir que antes das 7:00 da manhã estarei fora das Marginais Pinheiros e Tietê. Da mesma forma, saio mais cedo do trabalho, para garantir que passarei pelas Marginais antes das 17:00. No dia 11 de Outubro isso não foi suficiente.
De acordo com o Governo Federal, este ano o horário de verão no Brasil começaria no dia 16 de Outubro. As regras para o horário de verão no Brasil mudam com freqüência, então é difícil que qualquer sistema operacional introduza um método automático de atualizar-se com precisão. Para os radares da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) de São Paulo, o horário de verão no Brasil começou antes do dia 16. Não sei dizer precisamente quando, mas sei que foi o suficiente para que eu fosse multado duas vezes, no dia 11 de Outubro. Foram pouco menos de R$ 180,00 de prejuízo e alguns pontos a menos na carteira.
De acordo com a máquina eu passei onde não deveria às 07:22 e às 17:51. Na verdade, eram 06:22 e 16:51. Mas eu não podia provar. Era a minha palavra contra a máquina, e os computadores estão sempre certos. Resolvi recorrer com o recibo de pedágio da Rodovia dos Bandeirantes, sentido interior, pelo qual passei às 06:57.
Escrevi uma longa carta e anexei os recibos de pedágio, mesmo sabendo que esses recibos não traziam nenhuma identificação do meu veículo. Ou seja, eu poderia tê-los pego de outra pessoa. Além disso, a diferença entre os dois horários abria espaço para contestação. Me senti impotente. Mesmo que eu entrasse na justiça, o que não valeria a pena devido ao pequeno valor, as chances de perder eram grandes. Não havia provas e era a minha palavra contra a palavra de uma máquina.
Alguns dias depois de dar entrada no processo, ainda sem ter recebido resposta, li a notícia de que 8.954 multas por desrespeito ao rodízio seriam canceladas. O motivo: erro no horário das máquinas de OCR. Será que meu recurso deu início a uma investigação que identificou o erro? Não acredito. Não vejo boa vontade da Prefeitura de São Paulo com seus cidadãos. Provavelmente uma outra pessoa na mesma situação que eu foi capaz de provar o erro, evitando que pouco mais de R$ 800.000,00, gerados por um sistema com erro em apenas poucas horas, fossem parar nos cofres da Prefeitura.
Isso me levou a questionar todos os outros sistemas dos quais dependemos. Se o banco disser que você fez uma transferência via Internet e você não tiver como provar, o que ocorre na maioria dos casos, você dependerá da boa vontade do seu gerente para resolver o problema. O ônus da prova não foi invertido. Ainda cabe ao banco provar que você fez o saque, mas um sistema com erros pode certamente gerar uma falsa prova. No meu caso, a multa continha uma foto do meu carro, com o horário e o local impresso na foto. Foi uma prova forjada por um sistema que continha erros, provavelmente causado por uma linha de código e a falta de testes adequados.
Esse tipo de erro ocorre todos os dias. Erros em sistemas de companhias telefônicas, bancos, operadoras de cartão de crédito, companhias aéreas e financeiras, entre outras, podem causar muitos problemas aos clientes. Estamos todos impotentes diante disso. Confiamos tanto em alguns sistemas que quando eles falham nos tornamos protagonistas de um conto kafkiano.
O Brasil não precisa de tecnologia. Ainda faltam coisas básicas. Em São Paulo, as duas Marginais estão cheias de sistemas eletrônicos para multá-lo, mas você não consegue dirigir alguns metros sem cair em um buraco. Quando não é roubado, o dinheiro público é mal empregado ou mesmo usado contra você.
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